A música eletrônica do século XXI parece dividida em dois grupos: o de produto descartável que serve como mera trilha sonora para festas jovens (digo isso sem nenhum juízo de valor); e o de experimentações artísticas, que ecoam em porões e até mesmo entre a vanguarda intelectual. Resumindo grosseiramente: um pertence as academias de malhação e a outra a academia platônica. Eu não frequento nenhum destes espaços. Todavia, de tempo em tempo algumas pérolas chegam até mim. Um "compilado" do Against All Logic foi meu maior achado desta década neste segmento.
Against All Logic (ou simplesmente A.A.L.), nada mais é que o Nicolas Jaar, um compositor/produtor de ascendência chilena, que já havia se destacado com dois bons álbuns e outras pontuais produções. Embora 2012 - 2017 (2018) seja uma "compilação" de trabalhos deste período descrito, o material não soa como um "catadão". Há uma progressão coerente entre as faixas. Vale lembrar que o álbum foi lançado sem alarde e sem informar ser um material do Jaar. Uma atitude exemplar em tempos onde qualquer panaca quer atender por "dj". Talvez também por isso o disco logo chamou atenção da crítica e público. Mas o que vale é mesmo a música.
O tom cinematográfico de "This Old House Is All Have" é provocado por samples de soul music saturados, remetendo de alguma forma aos filmes de blaxploitation. É o tipo de música eletrônica que até mesmo o Tim Maia gostaria.
A sequência com "I Never Dream" é muito mais calcada da house music, trazendo um beat complexo com suas frequências inteligentemente filtradas. Quando parece que vai "explodir", há um aconchego nos synths, mas sem despencar ritmicamente. Um espetáculo de composição que deixaria a dupla do Daft Punk maravilhada.
Em "Some Kind Of Game", em cima de um instrumental insistente, há uma interação com samples vocais brilhantemente manipulados. Já a impulsivamente etérea "Hopeless" traz sintetizadores complexos distribuídos numa mixagem impressionante. Atenção para o reverb submergido ao final da faixa.
Impossível não se contagiar com o groove tipico da disco music na dançante "Know You". A singelamente funk "Such A Bad Way" mantém a luminosidade em alta. Adoro essa linha de baixo opaca e a percussão incrivelmente humana para um disco de música eletrônica.
Lembro do Anthony Fantano dizer que "Cityfade" soava mais como um grupo de pessoas numa jam em estúdio do que como um único indivíduo atrás de um computador. Eu concordo com esse incrível feito. Atenção para o ritmo intrincado (há acentuações que chegam até mesmo a remeter ao samba), o distante coro vocal, os efeitos de synth e o baixo sinteticamente borbulhante.
A estrondosa "Now U Got Me Hooked" é mais uma amostra do poder que tem um sample bem utilizado. Fora que a faixa tem um baixo poderoso e um beat calcado em timbres orgânicos de percussão que elevam a house music.
Os graves intoxicantes e os ruídos glitch de "Flash In The Pan" merecem o volume elevado das pistas. Inclusive, o final do disco caminha para esse lado mais noturno, vide o baixo sintetizado da etérea "You Are Going To Love Me And Scream" e a acachapante "Rave On U", com suas variações não menos que enlouquecedoras.
A música eletrônica muitas vezes negligencia a composição. Sendo assim, o trabalho do Nicolas Jaar serve de aula para qualquer produtor/dj que queira construir um cenário mais profundo com sua música. Nós, meros ouvintes, ficamos felizes de habitarmos este ambiente.
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