A discussão sobre identidade de gêneros é uma pauta social presente. Já na música, o foco é outro, a proposta é aniquilar os gêneros. Fundir para fazer da arte uma língua nova. Essa reflexão me surge ao abordar o produtor/DJ/instrumentista Flying Lotus, sendo Cosmogramma (2010) o álbum que revelou a mim o grande criador que ele é.
É impressionante a amalgama abstrata construída logo em "Clock Catcher", vide os arpejos sintetizados que mais parecem representar alguma conquista do Mario Bros, a melodia com traço oriental e o trastejar de uma corda metálica semelhante a de um berimbau.
Na sequência o contrabaixista Thundercat desfila seu conhecido virtuosismo apresentando timbres e frases singulares. Seu talento também salta aos ouvidos na linda "MmmHmm" (a única faixa do álbum que passa dos 4 minutos) e na estranhíssima "Dance Of The Pseudo Nymph".
Tão bizarro quanto divertido são os baixos sintetizados de "Nose Art", que gargarejam enquanto climas etéreos ecoam e um beat de drum and bass bota o ouvinte pra dançar.
A exuberância do arranjo orquestrado da curtinha "Intro///A Cosmic Drama" impressiona, sendo o desaguar em "Zodiac Shit" um contraponto através de seu beat urbano e cinematográfico. Há muito do hip hop nessa produção.
Os ritmos complexos de "Computer Face//Pure Beign" e "Recoiled" deixariam o Aphex Twin orgulhoso. Ambas as produções são ricas em camadas e texturas, sendo que nessa última harpas japonesas parecem dialogar com motosserras, raio lazer e águias (???).
Em cima de ruídos sintéticos tipico do glitch, Thom York oferece sua voz reluzente para "...And The World Laughs With You". Quem também colabora com o álbum é a Laura Darlington, que parece cantar ao lado de uma partida de ping-pong numa UTI em "Table Tennis" (???).
Como sonhos/pesadelos, "Arkestry" e "German Haircut" surgem em meio a fumaça cósmica, com direito a bateria e sax (Ravi Coltrane) altamente jazzísticos. Vale atentar para o final da primeira faixa, dona de uma melodia complexa digna dos compositores mineiros.
Ainda que com um colorido inusitado nos timbres e arranjo, "Do The Astral Plane" invoca uma pista noturna. Já a sinfonia por trás de "Drips//Auntie's Harp" é de chorar. Dois exemplos da versatilidade composicional do Flying Lotus.
O disco tem como desfecho "Galaxy In Janaki", que dentre tantos sons, contém a respiração da sua mãe no leito de morte no hospital.
Cosmogramma mostra que as possibilidades musicais não estão esgotadas. Ainda é possível construir uma arte nova, complexa e vigorosa através dos sons.
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