terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Pérolas do pagode noventista

Cresci na década de 1990 em uma família operária de perfil classe média (era FHC, era de fome e desemprego, onde mesmo criança, percebia meus privilégios).

Desde criança tive a MTV como difusor cultural (e eu fui um receptor fácil). Na contramão disso - em festas, escola, clube, bairro ou em programas dominicais (Faustão e Gugu) -, vi o pagode romântico ascender como uma força popular gigantesca.

Por mais que eu venha de uma família com formação política de esquerda, era explícita nela uma dissonância a tudo que era popular. Fosse a seleção brasileira ou o pagode, se era uma manifestação genuína do povo para o povo, não fazia parte da minha formação cultural familiar.

Com isso, cresci com resistência sonora não só ao pagode, mas também ao samba. Demorei (lá pelos meus 16 anos) para perceber a excelência de nomes como Nelson Cavaquinho, Cartola e Paulinho da Viola. Mais ainda para admirar sambistas “festivos”, como Beth Carvalho, Martinho da Vila e Zeca Pagodinho. Entretanto, o mais impressionante se deu nos últimos meses. Fui me dando conta que genuinamente gostava de alguns pagodes. Não de forma cômica ou soberba como um setor da classe média faz para tentar transmitir alguma “brasilidade” (não falo de todos, mas esse fenômeno existe). O que chamou a minha atenção foi a beleza de algumas melodias, interpretações emotivas, letras acima da média (principalmente se comparada ao pop atual) e harmonias de cair o queixo.

Claro, isso não está presente em todo o gênero. Posso até afirmar que grande parte do que ouvi recentemente ainda me soa muito mal, principalmente as canções mais “humoradas”. Mas não deixa de ser prazerosa minha identificação com canções que no passado eu lidava com preconceito. De alguma forma, no meu subconsciente, acredito que uma predileção estava sendo plantada ali.

Dito tudo isso, quero compartilhar faixas que saltaram aos meu ouvidos. Ouçam sem preconceitos. Gostem ou odeiem, mas com a convicção de um ouvinte sério e atento.


“Procura-se Um Amor” (Belo)
Essa música já me ganha na introdução. Ótimo arranjo de cordas. Fora que tem Torcuato Mariano na guitarra, Arlindo Cruz no banjo, Mauro Diniz no cavaquinho, Prateado no baixo… tá explicado, né!

“Tua Boca” (Belo)
Se for pra ser rigoroso, não dá nem pra chamar de pagode. É a música romântica brasileira, aqui de melodia lindíssima, com cara de novela das sete e a presença do Roupa Nova na base instrumental.

"Telegrama" (Exaltasamba)
De autoria do talentoso Leandro Lehart (líder do Art Popular), essa foi a primeira música de pagode que ouvi e genuinamente gostei. Melodia muito bonita, tremenda linha de baixo, bom arranjo e clima vagaroso. Todavia, o final do refrão, com seu “eu vou até lá”, sempre me pareceu uma solução composicional menor dentro de uma ótima canção.

"Desliga e Vêm" (Exaltasamba)
Começa uma paulada no coração e o sentimento só floresce conforme a canção evolui. Melodia perfeita em cima de um caminho harmônico muito bem construído. Isso, claro, lindamente interpretada pelo Chrigor. Prateado também brilha no baixo.

“Recado A Minha Amada” (Katinguelê)
Sâo muitos os destaques: esse piano "jazz brazuca" nos versos, a categoria do Salgadinho ao cantar, o bonito arranjo e o refrão memorável. Tremenda canção romântica. Não por acaso fez tanto sucesso.

“Pela Vida Inteira" (Kilourcura)
O refrão cansou? Sim. Ficou com cara de "pagode da Rede Globo". Mas é uma composição bem boa.

“De Repente Vem Você" (Kilourcura)
Na real, vale escutar o álbum Diamante (1999) inteiro. Tem várias pérolas como essa.

“Tô Te Filmando (Sorria)" (Os Travessos)
Composição do Arnaldo Saccomani, o que talvez justifique seu arrojo harmônico, sem abandonar o apelo pop. Interessante como a primeira parte traz quase nada de pagode, soando mais como um r&b contemporâneo abrasileirado. Mais uma tremenda linha de baixo (se não me engano, também autoria do Prateado). Ótima performance vocal do Rodriguinho.

"Meu Querubim" (Os Travessos)
Isso aqui é pagode progressivo, tá. Tremenda harmonia, arranjo e sensibilidade. É tão sofisticada que chega a ser densa. Certa vez, amigos tentaram tocar numa rodinha descompromissada, mas não deu certo. Quando começaram eu já previ que iam se dar mal. É embaçado.

“Final Feliz” (Razão Brasileira)
Uma beleza de arranjo. “É bonito de ver”. Muito bem desenvolvido e escrito. A parte cantada em conjunto traz um ar de doo-wop.

“Agora Viu Que Perdeu e Chora” (Reinaldo, o Príncipe do Pagode)
Composição do Arlindo Cruz, aqui na voz do Reinaldo, um intérprete elegante e subvalorizado. Atenção para a maneira que ele finaliza cada frase. Vibrato suave e lindíssimo.

"Velocidade da Luz" (Revelação)
Grupo do Xande de Pilares. Um samba fincado no tradicional. Adoro o cavaquinho nessa música, assim como a letra, que é um tanto quanto… “viajante”. Vale lembrar que saiu pela Deckdisc.

"Que Se Chama Amor" (Só Pra Contrariar)
Aqui o pé está fincado no brega. O sax na música pop gera isso. Seria um problema se a melodia introdução não trouxesse uma irresistível vontade de “me afogar num copo de cerveja”. Ótimo refrão, feito para cantar de peito aberto. Adoro o coro ao fundo, novamente trazendo um clima doo-wop.

"Domingo" (Só Pra Contrariar)
As pessoas deveriam ficar orgulhosas do pagode ser um dos gêneros mais populares do Brasil. Olha a elegância dessa música. Mas vai falar isso pra um rockeiro branco acostumado com AC/DC.

“Interfone” (Só Pra Contrariar”)
A interpretação é exagera (Alexandre Pires tá parecendo um cantor sertanejo com esse vibrato longo e canto suspirado) e o fato de ter virado “música de karaokê” cansa, mas é uma ótima música, de arranjo bonito e refrão poderoso.

“Pra Não Me Ver Chorar” (Só Preto Sem Preconceito)
Vai me dizer que isso aqui não é bonito? Essa base de tamborim, violão, baixo e cavaquinho é uma cacetada.

“Farol das Estrelas" (Soweto)
Se alguém falar que isso é mal escrito, tá imediatamente desqualificado a opinar. A composição é do Paulo César Feital com o Altay Veloso, mas poderia ser do Caetano Veloso. A interpretação do Belo é um show à parte. Ótima melodia, baixo, refrão, clima… um clássico da canção romântica brasileira.

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