Hoje é possível afirmar que o hip hop instrumental tem um espaço relevante dentro do cenário musical, seja ao repaginar o jazz contemporâneo ou servindo de trilha relaxante em lives intermináveis no YouTube (eis o tal do lo-fi hip hop da "garotinha estudando"), mas principalmente via álbuns clássicos de artistas/produtores/DJ's cultuados como J Dilla e Madlib. A raiz desta estética pode ser representada no ambicioso e influente Endtroducing..... (1996) do californiano DJ Shadow.
Um fator técnico dá a esse trabalho pontos extras: é o primeiro álbum formado inteiramente por samples, ou seja, construído exclusivamente através de um amontoado de colagens de gravações extraídas de (neste caso) discos de vinil. Neste bolo há desde Tangerine Dream, Billy Cobham e Giorgio Moroder até Metallica e Björk, o que timbristicamente cria um crochê ultra variado.
Com scratches orgânicos, "Best Foot Forward" prepara o cenário para "Building Steam With A Grain Of Salt", que através de acordes tensos ao piano, vozes dramáticas (tanto na narração, quanto na melodia do coro) e um beat lento, grave e musculoso, pouco lembra o que era feito no hip hop até então. Vale se atentar para as batidas frenéticas criadas no meio da música, grooveado num MPC em cima de uma guitarra funk.
O beat livre de "The Number Song" nos faz dançar mesmo em cima de uma cama grave e soturna. Mais parece uma jam ríspida de bateria e órgão. Isso sem mencionar mais um momento funky no meio da peça.
Embora num groove de bateria orgânico, distorcido, reverberoso e saborosíssimo, "Changeling" parece trilhar os caminhos espaciais da ficção cientifica via sintetizadores que se espalham por todas as dimensões da mixagem. A linha de baixo ultra grave dá balanço para essa viagem cósmica.
A hipnótica "What Does Your Soul Look Like (Part 4)" surge como uma peça vagarosa, noturna, nebulosa e de atmosfera progressiva. É um momento de delirante aconchego.
Há algo tanto de música oriental quanto de ambient em "Stem/Long Stem". É dos momentos mais experimentais do disco, onde ritmos velozes se encaixam numa trilha cinematográfica lindíssima. São quase 8 minutos de um estranho sonho. A faixa desagua em "Transmission 2", dos mais bonitos interlúdios que já ouvi na vida.
"Mutual Slump" soa como uma ode as texturas sonoras. Timbres "estragados" aqui servem a uma composição cativante. Mais uma vez temos um show rítmico.
A exuberância trip-hop no ritmo intoxicante e na linha vocal feminina de "Midnight In Perfect World" é de charme quase sexual.
O beat de "Napalm Brain / Scatter Brain" não é meramente grooveado e pulsante, mas fluido e arrojado, se desenvolvendo no decorrer da épica composição. É funk, tribal, urbano, psicodélico e espacial.
A derradeira de doce "What Does Your Soul Look Like (Part 1)" faz novamente uma viagem ao lado mais jazzistico do hip hop. Adoro o coro de vozes ao fundo, o timbre de bateria, os scratches, a linha de baixo, o sax... tudo.
Se debruçar neste disco é desvendar a cada nova audição uma nova qualidade de timbres, de construção sonora, elaboração de climas, narrativa e mixagem. É um trabalho singular que hoje parece fazer ainda mais sentido do que quando lançado.
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