Eu estaria mentindo se disse que acreditava que a Elza Soares, no auge dos 85 anos, ainda lançaria um trabalho relevante. Na realidade, ela estava até meio "esquecida". Claro, sua história pessoal e potencial artístico era valorizado, mas muito aquém do que veio acontecer após o lançamento do A Mulher do Fim do Mundo (2015), que foi aclamado logo em seu lançamento pela imprensa nacional e internacional.
Muito disso se deu pelo fator surpresa. O que se ouve no disco é a Elza trafegando pelo melhor cenário da música popular brasileira contemporânea. Entre os nomes envolvidos que colaboram para isso estão o Guilherme Kastrup (bateria e produção), Kiko Dinucci (guitarra), Marcelo Cabral (baixo), Rodrigo Campos (cavaco e guitarra), Thiago França (sax), Thomas Rohrer (rabeca), dentre outros, incluindo compositores como Douglas Germano e Rômulo Fróes. Todos dispostos a tirar Elza e ouvinte da zona de conforto.
Se por um lado a voz da cantora não apresenta a mesma potência (nem poderia), há um interessante direcionamento para a dramaticidade e profundidade interpretativa. Sua voz carrega alma e história, funcionando muito bem dentro das narrativas. Isso fica nítido logo de cara em "Coração do Mar", onde a cappella ela já cria um cenário imersivo e enlameado via poema de Oswald de Andrade.
É maravilhoso como cordas, efeitos eletrônicos, cavaquinho e percussão de samba se misturam em "A Mulher do Fim do Mundo". A canção cresce conforme a poesia evolui, desaguando num refrão emotivo, carnavalesco e soturno. Tremendo arranjo. Fora que a voz da Elza no final parece um trombone.
Embora com timbres saturados, melodias intrincadas e desconstrução rítmica do samba, "Maria da Vila Matilde" tornou-se um hino é por sua letra afrontosa que tão bem se opõe ao feminicídio. Uma faixa violenta, que não por acaso teve enorme alcance.
É curioso com a Elza traz referências da vanguarda paulista e até mesmo da no wave em canções como "Luz Vermelha". Vale ainda se atentar para uma atitude quase punk em "Pra Fuder", embora calcada em levadas frenéticas de violão e cuíca. Destaque também para o arranjo de metais.
De instrumental paranoico, "Benedita" está em sintonia com as ruas. É uma música cheia de emaranhado e sujeira, além menção a célula rítmica do funk carioca. Há crack, violência e travestis. Sem deslumbre, sem amedrontamento, apenas a realidade.
O afrobeat parece incorporado à música brasileira em "Firmeza?!". Isso sem abrir mão da contemporaneidade via um tempero hip hop.
Como bem foi apontado pela Pitchfork, é curioso fazer uma paralelo entre "Dança" e a estética sonora do Tom Waits. É uma canção torta e circense.
Há ainda espaço para a estranha "O Canal", que relembra Alexandre, O Grande; a linda "Solto", de melodia, harmonia, interpretação e instrumentação introspectiva; além do desfecho ruidoso e altamente sentimental, "Comigo".
Num país que lida tão mal com sua memória, foi especial ver o culto à Elza ainda em vida e nada passiva, se fundindo ao presente. Com mais de meio século de carreira, não é nenhum absurdo dizer que A Mulher do Fim do Mundo é dos seus principais discos. O primeiro dela somente com canções inéditas. Toda a aclamação é merecida.
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