A primeira vez que me atentei ao trap foi com o álbum Rodeo (2015). Obviamente eu já havia escutado superficialmente algo desta vertente do hip hop, vista sua popularidade na última década. Entretanto, a música do Travis Scott apresentava particularidades que o colocaram em foco não somente na minha audição, mas da indústria cultural, tornando-o headliner de mega festivais (Lollapalooza), estampando capa de revistas (Rolling Stone) e até mesmo entrando para a família Kardashian.
Embora esse seja o primeiro álbum do rapper texano, ele rapidamente ganhou destaque devido suas colaborações anteriores para o Kanye West.
Em tom épico, "Pornography" abre o disco com uma produção estrondosa e criativa, encaixando a voz do rapper num ambiente próprio. É impressionante como seu canto é distribuído não somente por todo panorama do estéreo, mas também com profundida através de reverbs e delays. Seu flow também se mostra acima da média neste segmento.
Trazendo o Quavo (Migos) na parceria de "Oh My Dis Side", a faixa coloca o southern hip hop no centro do trap. O abuso de auto-tune na produção não desumaniza os rappers, servindo na verdade como uma capa de herói. É legal perceber que enquanto a primeira parte da canção é bastante dark, seu final evolui para algo próximo do r&b contemporâneo, com groove borbulhante, boa melodia e bela progressão harmônica.
Sequer os quase 8 minutos de "3500" são capazes de tirar o potencial pop da canção. O beat grave e pesado serve de cama para Travis, 2 Chainz e Future desfilarem rimas poderosas, ainda que seja o refrão o grande gancho da faixa. Atenção mais uma vez para o uso do reverb atmosférico nas vozes.
Há uma saturação crocante e uma melodia doce no beat espaçado de "Wasted" (assinado pelo Metro Boomin), embora sejam a vozes "na cara" em interpretações aterrorizantes o que mais chama atenção. Mais uma prova de que é possível ser um bom MC dentro do trap.
É interessante como o Travis insere elementos externos ao trap para ressignificar o gênero. Isso fica nítido na espetacular "90210", que inicialmente explora uma melodia vocal feminina lindíssima de clima new age. Há inclusive uma atmosfera ambient na instrumentação, ora representada num synth distorcidos, ora em camas sonoras exuberantes, ora por uma guitarra "robertfrippiana". Na segunda parte, o rapper rima em cima de uma batida bastante orgânica para os padrões do trap. A linha de baixo sintetizada e os acordes de piano sampleados também soam especiais.
Com participação do The Weeknd, "Pray 4 Love" é de potencial pop impressionante. A canção tem algo oitentista no gene da composição, embora a produção estrondosa soe futurística.
O beat torto de "Nightcrawler" parece ainda mais intoxicante diante das vozes ultra processadas que se apresentam como raios luminosos perfurando a canção. Como esperado, a faixa tem um clima festivo e noturno.
"Piss On Your Grave" é o patinho feio dentro do contexto do disco. Começando por sua introdução de sonoridade "vintage" trazendo ecos de rock psicodélico, para logo depois Kanye West surgir com seu estilo verborrágico e insano. Faixa esquisita e sensacional.
Com batida típica de trap (agudinho insistente, grave desumano), "Antidote" faz dos famigerados ad-libs um elemento psicodélico ao preenche-los com camadas tecnicamente avançadas de delays e revebs.
Esse elemento psicodélico se mantém em "Impossible", chegando a adentrar os pensamentos entorpecidos do Travis Scott. Mais uma vez a mixagem é elemento central na canção, promovendo uma espacialidade sofisticada.
Tem quem olhe com desconfiança para "Maria I'm Drunk" por trazer Justin Bieber e Young Thug como convidados. Entretanto, honestamente, dá para encarar a canção como uma peça de art pop. A introdução ambient/atmosférica é bonita, o refrão é fixante, o baixo tem groove poderoso, o piano minimalista é insistente, o synth é fúnebre, o arranjo é pouco ortodoxo, há variedade vocal, a mixagem é perfeita... são muitas qualidades.
A estrondosa "Flying High" é dos momentos mais divertidos do álbum. O hit-hat parece descontrolado no beat inicial, há um agudinho curioso de algo como um teremim, além de uma ponte solar inesperada. O refrão é para cantar junto. Toro y Moi participa do feito, mas é o Pharrell Williams que assina a produção.
O nível continua elevado em "I Can Tell". Não há outro trapper capaz de elaborar uma composição com tanta textura timbristica e flow tão consistente. As mãos do Mike Dean pesam nessa faixa.
Por sua vez, Terrace Martin dá as caras em "Apple Pie", canção de perfil bem mais pop, que mescla bem os elementos orgânicos e sintéticos na produção contemporânea. É um belo final.
Muito mais que um mero single para ouvir no carro pré balada com o som elevado as alturas (comumente com graves rachando), Travis Scott construiu um álbum de trap inovador, memorável, cativante, influente e esteticamente refinado. Grande parte da crítica desceu a lenha, mas passado alguns anos e tendo o rapper lançado posteriormente o aclamado Astroworld (2018) - muito bom também, mas para mim menos impressionante -, é fácil hoje reconhecer Rodeo como a pérola que é.
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