Dito isso, valeria citar discos do Metá Metá ou A Mulher do Fim do Mundo (2015) da Elza como representantes desta cena - quem sabe no futuro -, mas teve um que bateu muito mais forte em mim: Encarnado (2014) da Juçara Marçal.
Com décadas de atividade artística - tendo passado por grupos como Vésper e A Barca, integrando o Metá Metá e colaborado com o Criolo e Kiko Dinucci -, tava na hora da Juçara Marçal assinar um disco solo. Não por necessidade pessoal, mas da cena. Ainda assim, seu nome omitido na capa não omite seus eternos parceiros, sendo que Encarnado traz o Kiko Dinucci e Rodrigo Campos na linha de frente do instrumental, abdicando de baixos e precursões em prol de guitarras ríspidas, paranoicas, tortas, sujas e angulares. Em alguns momentos, até mesmo cavaquinhos e a rabeca do Thomas Rohrer ganham distorções cortantes.
O estranho e encantamento surge logo em "Velho Amarelo", onde melodias contrapontista dialogam lindamente com a letra lúgubre. Em momentos, ruídos se somam a insistente melodia. A interpretação da Juçara é tão contida quanto dramática.
Com letra do Douglas Germano e pouco mais de 2 minutos, "Damião" é das músicas mais fortes lançadas no Brasil. Os buracos no arranjo e os acordes estridentes trazem ainda mais força para seu roteiro, que narra não passivamente a violência dos hospitais psiquiátricos.
A estranheza musical se mantém na construção melódica e na estrutura poética urbana de "Queimando A Língua", canção assinada pelo Romulo Fróes. Seu final é repleto de dissonâncias guitarristicas.
A cultura afro-brasileira é aqui explorada muito além do som, vide "Odoya", que faz de uma saudação Orixá uma experiência absurdamente imersiva. A faixa deságua em "Cirando do Aborto", dramática no tema, na escrita, arranjo e interpretação. A canção cresce de forma não menos que dolorosa, com direito a final cacofônico. Por sua vez, a sequência com "Canção Pra Ninar Oxum" é singela e acolhedora, ainda que explorando timbres esquisitos.
A Juçara dá um show de interpretação na linda "Pena Mais Que Perfeita". A influência da Vanguarda Paulista salta aos ouvidos em "E o Quico?", de autoria do Itamar Assumpção, aqui repaginada brilhantemente. Atenção para o sax do Thiago França.
"Não Tenha Ódio No Verão" é daquelas doideras sagazes e carismáticas que somente o Tom Zé poderia imaginar.
Há enorme atitude rockeira em "A Velha da Capa Preta", mais uma vez muito bem escrita e com guitarras vorazes.
Fechando o disco temos o conto brutal de "Presente de Casamento" (Romulo Fróes) e o samba vingativo "João Carranca", cantado com uma autoridade que poucos interpretes atuais parecem ter.
Aclamado pela crítica, Encarnado se mantém esteticamente revelante e brilhantemente representativo, muito pela força da Juçara, uma mulher negra na linha de frente de uma obra verdadeiramente única, mas também por todo um coletivo, que repensa as estruturas sonoras da canção brasileira.
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