terça-feira, 7 de março de 2017

Quando a "apropriação cultural" deu certo

O tal debate sobre apropriação cultural ficou em alta nas últimas semanas. A história envolto a um turbante usado por uma menina branca já nem faz mais sentido, mas o tema ainda sim.

Desde que o samba é samba, a apropriação cultural na música é assunto. A discussão está lá no clássico filme O Cantor de Jazz (1927). Na história, um jovem judeu desafia sua família ao torna-se cantor de jazz, para desespero de seu pai, um cantor litúrgico de uma sinagoga.

Existem inúmeros textos/vídeos na internet tratando amplamente sobre o tema (veja o que o Canal do Slow disse sobre), portanto, não vou me estender sobre o assunto. Só o que vou fazer é colocar alguns momentos em que artistas se apropriaram de outras culturas para influenciar suas obras musicais. Veja abaixo:

O rock branco de Elvis Presley
Se hoje é normal ver jovens brancos com cara de estudantes de marketing nos palcos do Lollapalooza, em meados da década de 1950 era estranho um branquelo caipira cantando músicas influenciadas por blues e gospel. Essa música "pertencia" a caras como Chuck Berry, Little Richard e Ike Turner. Eis uma dentre tantas revoluções do Elvis Presley.

Ray Charles encontra a country music
Após anos servindo a Atlantic Records, distribuindo hits que transitavam entre o jazz, gospel, blues e r&b, Ray Charles eclodiu no sucesso de Moden Sounds In Country And Western Music (1962), que tornou ainda mais popular a música country através de arranjos primorosos. Um cego trabalhando num repertório country era indiferente, o que causava espanto mesmo era um negro fazendo isso. Felizmente, após grande insistência e diversas divergências de Ray com sua gravadora, a ABC-Paramount concordou em lançar o disco. O impacto social, além de musical, foi estrondoso.

Os ingleses descobrem o blues
Rolling Stones, John Mayall & The Bluesbreakers, Yardbirds, Manfred Mann, Spencer Davis Group e Them são alguns dos grupos da famosa Invasão Britânica que tiveram como influência o blues americano de Roberth Johnson, John Lee Hooker, Muddy Waters e dos três Kings (Albert, B.B. e Freedie). Isso tudo ainda que separados por um oceano das plantações de algodão que inspirou o nascimento do estilo. E o mais legal, ao serem reverenciados pelos jovens brancos britânicos, finalmente os velhos bluesman americanos passaram a ser respeitados (e ganhar dinheiro) em seu próprio país.

A paixão religiosa de George Harrison pela música indiana
No auge da psicodelia, o rock abriu as portas para novas experimentações, dentre elas a incursão da música oriental pelo ocidente, vide a proposta de George em canções dos Beatles como "Love You To" e "Within You Without You", essa última com direito a uso de sitar, harmônium, tabla, tambura e outros instrumentos típicos. Ravi Shankar aprovou!

Miles Davis e a criação do fusion
O jazz entrou na década de 1970 sem a mesma popularidade de tempos atrás. Era o rock que fazia a cabeça da juventude e explorava territórios dos mais variados. Miles Davis, músico já consagrado no jazz, percebeu isso e buscou referências em outros estilos, inaugurando o fusion (ou jazz-rock), com influência direta da música do Jimi Hendrix, Grateful Dead e Sly & The Family Stone. Até o wah-wah foi parar no seu trompete.

"Planet Rock"
Afrika Bambaataa, um negro de uma das regiões mais violentas do Bronx, samplea os alemães robóticos do Kraftwerk e da luz a obra fundamental de toda a dance music. O que seria do hip hop, miami bass, chicago house e funk carioca sem esse cruzamento?

O reggae/ska da 2 Tone
Eric Clapton, Rolling Stones, The Police e The Clash já haviam demonstrado o seu amor pelo reggae, mas o Specials foi ainda mais longe, popularizando o ska, a estética dos rude boys e a cultura skinhead jamaicana para o público punk britânico.

Beastie Boys, os "Elvis do hip hop"
Que o hip hop é uma manifestação legitimamente do gueto americano e levada adiante por artistas negros, isso ninguém ousa negar. Todavia, ninguém ousa desconfiar da excelência do Beastie Boys, grupo de rap formado por três branquelos judeus.

Body Count
Se o Beastie Boys pode se manifestar através do rap, porque Ice-T não poderia se jogar no heavy metal, estilo majoritariamente feito por brancos?
Obs: isso me fez lembrar daquela coletânea Judgment Night, que reúne parcerias do tipo Teenage Fanclub com De La Soul, Slayer com Ice-T, Sonic Youth com Cypress Hill...

As verdadeiras raízes do Sepultura
Quando o Sepultura decidiu gravar o álbum Roots, a banda foi até uma região afastada do Mato Grosso de encontro a uma tribo xavante para estruturar o conceito abrasileirado do álbum. A influência dessa viagem está explicita em "Jasco" e "Itsári", sendo essa última gravada às margens do Rio da Morte.

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