Ao contrário do que muitos pensam, o jazz não é um gênero morto. Além dos diversos medalhões que continuam quebrando tudo - Chick Corea, John McLaughlin, Herbie Hancock, Pat Metheny, Sonny Rollins, dentre outros - há uma nova geração de instrumentista ousados em suas criações - Yazz Ahmed, The Comet Is Coming, Sons Of Kemet, Snarky Puppy, BADBADNOTGOOD, Julian Lage, Amaro Freitas, dentre outros -. Todavia, o nome que com justiça ascendeu de forma mais vertiginosa foi o Kamasi Washington.
Esse espetacular saxofonista e compositor despontou ao ser requisitado pelos mais variados artistas, indo de Kenny Burrell e Wayne Shorter à Lauryn Hill, Nas, Snoop Dogg e, principalmente, Flying Lotus e Kendrick Lamar. Mas é The Epic (2015), o terceiro álbum lançado pelo Kamasi enquanto bandleader, a sua viagem mais ambiciosa e brilhante.
Como revela o nome, estamos diante de um álbum épico. São quase três horas (divididas em 3 LP's) numa jornada espiritual. Embora se debruçar sob a obra não seja uma tarefa hercúlea, ela exige dedicação apaixonada pela música. Cabe saber se tal proposta serve para você ou não. Dividir em sessões de audição não é má ideia.
Assim como já propôs o John Coltrane - e que fique claro, não estou sugerindo a comparação, só estou localizando o ouvinte de primeira viagem -, não é aleatório o uso do termo spiritual jazz, vide a profundidade e ambição não somente das composições, mas também da interpretação. Como exemplo disso é possível citar a exuberante "The Next Step", dona de um solo de sax estrangulante.
Como um "Pollock dos sons", Kamasi parece jogar baldes de cores na cara do ouvinte logo na abertura com "Change Of The Guard", faixa de grandiosidade chocante. É quase uma cacofonia controlada. Fora que o tema é lindíssimo.
O groove elegante de "Askim" abre as portas para um solo voraz do saxofonista, que cresce radiante, começando com uma finesse interpretativa, desaguando em frases dissonantes e ruidosas.
Em "Isabelle", a cama de órgão, piano, baixo acústico e bateria cria uma ambientação à meia luz, empoeirada, noturna e com cheiro amadeirado de bebida alcoólica. Um cenário que abraça os instrumentistas a cada improviso exposto durante a faixa.
É facilmente reconhecível a latinidade de "Final Thought", muito por conta das percussões e da melodia do naipe de metais. É o mais curto, elétrico e dançante momento do álbum. O solo de sax é no minimo irradiante, trazendo sons quase animalescos.
A segundo parte (ou segundo LP) da obra se inicia com o esplendor sinfônico de "Miss Understanding", com direito a coro de vozes intercalando com melodias velozes num perfeito post-bop. Improvisos radiantes em cima de walking-bass e acordes criativos elevam o disco a máxima essência do jazz. Cacetada!
Há uma leveza convidativa no tema de "Leroy And Lanisha", novamente precedendo solos de destreza impecável. O mesmo vale para "Re Run", onde antes de ricos improvisos, um arranjo cinematográfico cria harmonias emocionantes através de orquestrações e vozes celestiais.
O lado cancioneiro do jazz americano se faz presente na emocionante "Henrietta Our Hero", dona de instrumentação enorme e retumbante.
Com um beat moderno e sons elétricos dialogando num musculoso arranjo, "The Magnificent 7" é de exuberância complexa e arrebatadora. Aqui vale também mencionar os espetaculares instrumentista que colaboram com o álbum, vide o intercalar entre Miles Mosley (baixo acústico) e Thundercat (baixo elétrico).
Na terceira parte (terceiro LP), o tema de "Re Run Home" revisita quatro faixas atrás, mas numa versão mais funkeada e latina, com direito a baixos sintetizados de groove borbulhante. Há ainda um conteúdo politico em "Malcolm's Theme", que eleva o disco dentro da contemporaneidade. É muito legal como as vozes feminina e masculina se unem na canção. No fim temos a intensamente sacolejante "The Message", novamente com execuções impecáveis.
Entretanto, o grande destaque no desfecho de The Epic é a versão para "Clair de Lune" (Claude Debussy), capaz de arrancar lágrimas e sorrisos dos ouvintes. Beira o genial.
Como o ser celeste presente na capa, Kamasi Washington tornou-se a estrela que fez uma nova geração embarcar no jazz sem diluir um miligrama de sua arte. Majestoso!
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