A música pop é naturalmente cooptável. É o estilo da indústria e, por mais que tenha atingido inúmeros momentos de brilhantismo ao longo na história, não há muito espaço para subversões. E nem precisa ter, se entreter já tá ótimo.
No século XXI, essas características se acentuaram ainda mais. Mesmo os momentos de maior brilhantismo parecem apontar para o passado, vide Daft Punk, Mark Ronson, Dua Lipa e tantos outros com os olhos virados para a disco music.
Diante deste cenário surgiu a Charli XCX, cantora inglesa filha do pop da virada do século - de Spice Girls e Britney Spears -, mas que ao se relacionar com produtores ousados como A.G. Cook e Sophie, trouxe para a sua música uma estética futurística. Charli, lançado em 2019 após cinco anos sem um disco de inéditas, foi o aperfeiçoamento desta linguagem única.
A abertura com "Next Leve Charli" já é um tremendo estrondo. A interpretação da Charli é paranoica, veloz, lasciva e anfetaminada. Ao fundo uma melodia ganchuda de synth forma um cenário luminoso, que invoca raios de luzes de uma balada.
Não bastasse a produção pulsante e o arranjo soberbo, as linhas vocais tanto da Charli quanto da Christine And The Queens em "Gone" são altamente fixantes, com direito a um refrão glamuroso. Arpejos e baixos sintetizados constroem camadas dançantes e elegantes.
O beat de "Cross You Out" tem graves imensos oriundos do industrial. É uma canção adoravelmente soturna, mais uma vez com tremendo refrão. Sky Ferreira participa da faixa trazendo versatilidade interpretativa.
"1999" é um tributo a música pop/dance da virada do século. Charli recria a abordagem rasteira e festiva do período através de uma produção moderna. Cantarolar durante todo o dia após uma única audição é inevitável.
De abordagem ruidosa e esquelética, "Click" é uma impressionante amostra do que caracterizou as produções do selo PC Music, que de tão peculiares virou um subgênero, transformando o bubblegum bass numa poderosa amalgama corrosiva. Essa sonoridade ficou também conhecida como hyperpop. Kim Petras participa da faixa.
Se por um lado "Warm" não é dos momentos mais atrativos, ao menos traz a participação das Haim, simbolizando uma força feminina no pop contemporâneo. Musicalmente mais exitosa é "Blame It On Your Love", onde ao lado da Lizzo, Charli constrói uma canção carismática, de ritmos complexos e gritantes.
A produção de "Thoughts" soa como um raio lazer atravessando o canal auditivo. O uso do auto-tune é extremamente musical e bem-vindo.
No meio de toda essa agressividade energética, "White Mercedes" traz um sentimento mais pessoal na composição, funcionando como uma balada imersiva e cheia de personalidade. O mesmo vale "Official", dona de mixagem primorosa, inclusive colocando a voz da Charli em diferentes ambientações. Bonita canção.
Como luzes piscantes, "Silver Cross" intoxica nossos sentidos. Timbres distorcidos criam texturas atraentes diante de uma levada dance pop de pista.
De batida estranhíssima, "Shake It" é dos momentos mais criativos em termos de flow. Charli, Big Freedia, CupcakKe, Brooke Candy e Pabllo Vittar (pois é, e em português!) intercalam versos inusitados. Isso enquanto a base oferece timbres metálicos e espaçados que atuam como uma broca na nossa mente.
Com participação da Clairo e Yaeji, "February 2017" é um canção climática, docemente etérea e de mixagem impecável.
A derradeira "2099", com participação do Troye Silvan, posiciona o disco em seu tempo. É um glitch pop tão suave quanto "na cara", onde timbres cristalinos crescem numa explosão reluzente. Os segundos finais são um massacre corrosivo.
Embora seja um álbum indiscutivelmente POP (com letras garrafais), é gritante sua busca por tencionar o gênero. A produção sintética sui generis serve à artista dando-lhe uma voz futurística. Isso através de canções extremamente memoráveis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário