segunda-feira, 8 de junho de 2020

TEM QUE OUVIR: Kendrick Lamar - To Pimp A Butterfly (2015)

Em 2012 havia um estrondoso burburinho envolto a um jovem rapper de Compton chamado Kendrick Lamar, que acabara de lançar Good Kid, M.A.A.D. City, seu segundo álbum - o primeiro que tive contanto - após anos participando do coletivo Black Hippy. Embora eu tenha gostado do disco, não posso dizer que achei um trabalho tão certeiro (opinião controversa, eu sei). Independente da minha relação com a obra, a grande mídia já o colocou sob os holofotes, sendo seu próximo passo extremamente aguardado. To Pimp A Butterfly (2015) foi lançado e de imediato todos (desta vez, inclusive eu) perceberam estar diante de um artista diferenciado.


"Wesley's Theory" abre o disco com um colorido todo especial, a começar pela linda introdução que, num som lo-fi, invoca "Every Nigger Is A Star" (Boris Gardiner). A faixa traz George Clinton enquanto mestre de cerimônia. Mais g-funk que isso impossível! A canção discute com sagacidade as "contradições" que o dinheiro causa somente nas mãos dos negros. Frases borbulhantes do baixo do Thundercat, camadas de sintetizadores atraente via produção do Flying Lotus e uma mensagem do Dr. Dre completam a maravilha.

Na sequência temos "For Free?". Em meio ao sax de Terrace Martin e piano do Robert Glasper, o flow cheio de personalidade do Kendrick é veloz, emulando frases de bebop. Sua letra é bizarra, provocativa, irônica e humorada. Há um clima de cartoon nesse que é um dos melhores interlúdios da história do rap.

Mais uma vez apostando no groove, "Kink Kunta" é extremamente funky e cativante. Curiosamente no meio disso, arpejos de guitarra produzem um clima de tensão que acompanha a dramaticidade do texto.

O beat old school (com direito a kick "frouxo" fabuloso) de "Institutionalized" recebe uma intenção abstrata na espetacular produção. Embora o timbre/dobra da voz do Kendrick pareça desumaniza-lo, a letra remete ao seu passado, seu bairro, sua mãe. Uma das faixas mais pessoais, ainda que discutindo de forma ampla (e sagaz) a sempre "polêmica" conquista da fama e dinheiro por artista periféricos. Atenção para a participação do Snoop Dogg.

Kendrick volta a revisitar suas raízes na linda e confidente balada "Momma", com instrumentação diretamente calcada na soul music. Adoro seu estranho/divertido final.

De batida extremamente sexy - espetacular timbre de caixa! -, liricamente "These Walls" não poderia abordar outro tema que não fosse o sexo. O synth do excelente refrão representa o encontro do Prince com o west coast hip hop.

É emotiva e raivosa a maneira com que o Kendrick canta em "u". Sua performance é intensa - no segundo e terceiro verso é até mesmo ébria -, dialogando perfeitamente com o sax profundo/esfumaçado do Kamasi Washington. Um canção verdadeiramente cinematográfica.

Entre as faixas mais memoráveis lançadas nesta década está "Alright", dona de batida envolvente, sax jazzístico e com o nome da música sendo repetido de forma ganchuda. A canção é coproduzida pelo Pharrell Williams, sendo espetacular como ele manipula um trecho vocal e aplica no beat alterando o pitch e construindo dobras. Na letra, Kendrick é direito ao abordar a violência policial. Tema mais contemporâneo, impossível.

"For Sale?" soa como um sonho diluído de forma etérea (???). Uma descrição que falha ao tentar traduzir a beleza do interlúdio, dono de arpejos sintetizados, linha de baixo livremente pulsante, exuberante arranjo vocal (explorando a peculiar voz nasalada do Kendrick) e reverb cósmico. SZA participa da faixa.

Sacolejamente contida e complexamente politica, "Hood Politics" é uma rica amostra do flow criativo do rapper. Sua voz soa anasalada, insistente e com inflexões cheias de personalidade.

Sua rima atropelante se faz valer também em "How Much A Dollar Cost", faixa que narra um triste desenrolar do Kendrick com um dependente de crack.

Robert Glasper reaparece em "Complexion (A Zulu Love)", que combina acordes jazzisticos, scratch, refrão pop/neo-soul, além de belo e conciso arranjo de metais. Isso enquanto Kendrick e Rapsody disparam com sabedoria versos combativos.

O tema racial também dá a letra em "The Blacker The Berry", de beat de boom bap e refrão de ragga se comunicando com a voz ríspida do Kendrick. Aqui fica clara uma de suas principais influências, embora nem sempre lembrada: o Eminem. Isso inclusive ao se intitular "o maior hipócrita de 2015".

Muito mais aconchegante, embora não menos rica no flow, "You Ain't Gotta Lie (Momma Said)" vem para apaziguar e nos preparar para o final.

Com um astral pop à la Outkast e necessário autoestima no texto, "i" expõe a verdadeira tradição musical do Kendrick no sample de Isley Brothers. A guitarra com wah-wah recorta a canção trazendo acidez psicodélica. A performance tem energia de show, realçada no final, quando o rapper dá um sermão na plateia e depois improvisa versos.

Com 12 minutos de duração, é óbvio chamar a derradeira "Mortal Man" de épica. Acontece que ela é muito mais que isso. A composição homenageia Nelson Mandela, perdoa o Michael Jackson e, o mais impressionante, traz um emotiva entrevista do Kendrick com o Tupac Shakur (!!!), além de apresentar na íntegra o lindo poema que aparece aos trechos por todo o disco. O resultado é sem precedentes dentro da canção popular. Pagaria um bom trocado para ver o Bob Dylan analisando a faixa. O David Bowie já sabemos que adorou o disco.

Expondo o racismo com a sabedoria de um artista que se comunica com pessoas dispostas tanto a bajula-lo quanto joga-lo aos cães, Kendrick não apenas cospe verdades, mas embrulha toda a merda e devolve para seus donos sem sequer eles perceberem. De quebra deixa um bilhete poético, pacifico e perfeitamente escrito. Isso em meio a groove e vanguardismo musical. Incrivelmente um álbum exitosamente popular e ambicioso.

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