Mas por que to dizendo isso? Porque a doula nos perguntou se tínhamos algum plano do que fazer com a placenta (!!!). Sei que a Bela Gil fez vitamina com o órgão (estranho, mas ok, cada um com sua "viagem"). Outros produzem artes plásticas de qualidade questionável (acho muito "hippie"). Pensei em algo musical, talvez em transformá-la na pele de um tambor.
Já adianto que eu e minha namorada não chegamos a nenhuma conclusão do que fazer com a placenta (provavelmente será descartada), mas penso seriamente em gravar o áudio do parto, nem que seja com o celular. O lance é arquivar a experiência com o mínimo de interferência e tentar traduzir o momento de forma artística.
Pensando nisso, decidi explorar um "gênero" musical ainda desconhecido para mim: o Field Recordings, no Brasil conhecido como gravação de campo.
Na real não é exatamente um "gênero", mas uma concepção de gravar sons "reais", "naturais" e/ou "cotidianos" e embalar dentro de um conceito artístico. Em alguns casos, a simples captação já é um documento suficientemente relevante.
Neste sentido lembro do Alan Lomax, um pesquisador americano que registrou o canto de plantadores de algodão do sul dos EUA. Muitos deles eram escravizados e outros presidiários. O resultado é a chamada work songs, canções de melancolia muitas vezes involuntária. Essa tradição musical desaguou no blues. Vale muito conferir o disco Negro Prison Blues And Songs (1994), um documento antropológico valioso.
Outro álbum que me lembro é o Death In Haiti: Funeral Brass Bands & Sounds From Port Au Prince (2018), contendo gravações reais de velórios haitianos. Entre metais marciais fúnebres e choros compulsivos, é impossível ficar indiferente.
Vale ainda citar o Forms of Paper (2001) do Steve Roden, onde ele gravou o manuseio de papéis e manipulou digitalmente o áudio, dando origem a tal lowercase, "gênero" que consiste em ampliar micro sons. Mas ai devemos respeitar o rótulo já dado e deixar de fora das field recordings. O mesmo vale para trabalhos do Luigi Russolo e Pierre Schaeffer, mais associados a música concreta e eletroacústica, embora a relação seja oportuna.
Pronto, meu repertório de field recordings se resumia a isso. Hora de fazer algumas pesquisas e descrever minhas impressões. Vendo algumas listas, cheguei nestes discos que me interessaram pela descrição, aqui abordados sob meu ponto de vista.
Pode não parecer (e realmente não são) das audições mais fáceis. Tem que haver uma pré disposição. Por sorte, essa minha pesquisa se deu numa fase que isso fazia sentido. Caso não seja o seu momento, tudo bem, tente quando o interesse vier. Vale dizer também que o tempo disponível de uma quarentena intensificou a pesquisa.
Obs: inúmeros artistas da música popular já samplearam sons folclóricos e/ou da natureza em suas músicas. Entretanto, não é disso que se trata a field recordings. Aqui, mais importante que o próprio resultado, prevalece o registro de uma cultura, de um tempo, de um espaço. Neste caso, é até confuso saber quem é o engenheiro de áudio, interprete, autor, etnologista, musicólogo, pesquisador, arquivista ou educador. Na maior parte dos casos, há todos eles distribuídos por todas as obras. No fim são todos artistas.
Simon Scott: Below Sea Level (2012)
Começando num ponto seguro. Eis o baterista do Slowdive num disco de música ambient, onde ele combina timbres etéreos de guitarra com sons reais de algo que parece ser um pântano. Tem barulho de pássaros, insetos, sapos, vento e água (inclusive ruídos imersos). É agradável e sonoramente muito inteligente e exitoso. Bem bonito, mas embora presente em lista de field recordings, o resultado está mais para música ambient mesmo. Dito isso, lembro do Fennesz, que em algumas produções aponta para essa mesma abordagem.
Sounds of North American Frogs (1957)
Já que eu já tinha ouvidos sapos no disco anterior, porque não arriscar neste sugestivo álbum, inclusive citado em toda lista que vi. Não preciso nem descrever do que se trata, o nome já diz tudo. É praticamente um catálogo de sons de sapos (!!!). Tudo devidamente comentado. Obviamente não aguentei os 54 minutos, mas cheguei a conclusão que tem sapos bem "sampleáveis". Ao que consta, o álbum foi bastante usado no meio acadêmico, mais precisamente na área de biologia. Vale também dizer que a capa é legal. Atente-se a data de gravação e lançamento. Curioso.
Matmos: Ultimate Care II (2016)
Verdade, já tinha escutado esse ótimo disco, mas não tinha relacionado a field recordings. Para mim tava mais para um álbum de música eletrônica experimental. Mas faz muito sentido, já que há amostras bem cruas de sons de máquina de lavar (!!!). Há também manipulação do áudio para tornar sua fonte mais "musical", mas acho que nem por isso deixa de ser field recordings, ainda que menos arqueológica.
Seaworthy and Taylor Deupree: Wood, Winter, Hollow (2015)
Pode-se entender este álbum como uma demo de pré-produção (embora muito bem gravada), onde o duo capta a frieza do momento de composição intrínseco ao espaço-tempo, no caso, um inverno em meio a floresta. Bem bonito, poético e frio.
Chris Watson: Outside The Circle Of Fire (2000)
Conhecia o Chris Watson do Cabaret Voltaire, mas não sabia que ele tinha se especializado neste tipo de captação. Ao que consta ele chegou até a trabalhar em documentários da BBC. Dado esse ofício, ele virou um artesão em reproduzir cenários através dos sons. Não sei se é qualidade da captação ou da pós produção (provavelmente ambos), mas se escutado de fone, é possível em alguns momentos se ver cercado de aves (vide "Massed Knot Roots"). O conceito deste álbum é exatamente fazer do microfone uma poderosa lente, que alcança até mesmo a boca de um hipopótamo.
Field Trip: England (1959)
Me interessei no disco por conta da capa. Parecia algo florestal, meio black metal. O início com o som de crianças cantando ao brincar não pareceu promissor. Já ia desistindo quando começaram algumas faixas com cantos balbuciados de velhos bêbados. Ai a coisa ficou interessante! Lembrei até do senhorzinho alcoolizado no Laranja Mecânica, cantando pouco antes de ser espancado. É interessante como é algo corriqueiro (já presenciei muitas situações destas), mas nunca cogitei gravar. Tem um lance de "canto de pirata" nestas canções. É legal.
Francisco Lopez: La Selva (2014)
Por mais que seja impecavelmente captado, não posso dizer que foi dos álbuns que mais me interessou. Claro, ele entrega o que promete: uma selva, com sua fauna, flora e clima. Alguns momentos são perfeitamente utilizáveis em sonoplastia. Mas é só. Percebi que dentro do field recordings, eu gosto mais quando há uma interferência humana.
Music for the Gods: The Fahnestock South Sea Expedition: Indonesia
Atualmente é muito mais fácil registrar a cultura indígena. Gravadores e câmeras são aparelhos compactos e super fiéis. Mas é surpreendente ouvir esse álbum e ver que as gravações datam de 1941. Os irmão Fahnestock adentram uma selva na Indonésia e conseguiram captar uma música altamente imersiva e de complexidade exuberante. Muitos sons parecem aleatórios como sinos dos ventos, ao mesmo tempo que soam precisamente bem colocados. Hipnótico.
AKA Pygmy Music (1973)
Esse disco registra o canto dos pigmeus do sudoeste da África. Bastou poucos segundos ouvindo e já despertou o interesse em tentar desvendar os intervalos/escalas aqui entoados. Não foi fácil. Alguns momentos parecem dramáticos, outros mais celebrativos. Há muitos elementos rítmicos também. É interessante perceber o DNA do que chamamos de "world music" presente aqui. Para minha surpresa, ouvi com curiosidade numa tacada só. É bem legal.
Music In The World of Islam
Há três discos no Spotify contendo gravações da Jean Jenkins que são um verdadeiro estudo sobre a música Islã. Há uma abordagem melódica e rítmica extremamente singular. Os álbuns percorrem pela Índia, Turquia, Barein, Argélia, Afeganistão, Marrocos, Paquistão, Irã, Indonésia, Etiópia, dentre outros países. Pode ouvir dezenas de vezes que ainda assim terá muito para assimilar. Quem se interessa por música étnica não pode ignorar sua forma mais genuína e rica. Espetacular!
Musique Du Burundi (1968)
É aquela coisa, eu conheço o Kings Of The Wild Frontier (1980) do Adam And The Ants e arrotava conhecimento enciclopédico por aí dizendo que o artista tinha se influenciado pela música do Burundi, mas eu mesmo nunca tinha escutado. E no primeiro contato não foram as percussões que saltaram aos meus ouvidos, mas sim a voz grave e cochichada não menos que apavorante do François Muduga e do Bujumbura. Atente-se também a algo como um berimbau em "Chant et arc musical". Pelo que pude sentir nas interpretações, o texto é algo primordial na canção deste país.
Bartók & Kodály: Pure Springs: Hungarian Folk Tunes and Their Arrangements in Works
Este álbum é interessantíssimo porque mostra como a pesquisa da música folclórica pode ser inspiradora. Bela Bartók consolidou as raízes da música húngara através do estudo de pequenas aldeias do país. O resultado é posto lado a lado a fonte de inspiração. Bem legal.
Jana Winderen - Energy Field (2011)
Uma das maiores qualidades deste tipo de gravação é permitir nos levar não "somente" à culturas e tempos que não existem mais, mas também a lugares altamente inóspitos e hostis, como geleiras, fiordes e mares distantes. É isso que este álbum da conceituada Jana Winderen faz. Em muitos momentos nem precisa interferência de seres vivos, basta o sussurrar do vento para valer a experiência auditiva. O resultado é glacial.
R. Murray Schafer: "The Princess of the Stars" (1966 -)
Já tinha ouvido falar sobre esse teórico da música, mas não sabia qual era sua reflexão. Pelo que entendi, sua obra está muito ligado a acústica, ou seja, ao seu local de reprodução. Qualquer um que trabalha com produção musical sabe que isso é realmente fundamental para determinar as características do som. Mas ele vai mais fundo, visto por exemplo o que ele propõe em "The Princess of the Stars", trecho de sua ópera Patria, que deve ser sempre executada ao redor de um lago o mais distante possível da civilização. Por a obra se basear em mitologias nativas americanas, é para ele fundamental que a reprodução seja num ambiente que não separe o som nativo de seu espaço. Desta forma, a obra se mantém sempre viva, visto que o local de reprodução é determinante na sua forma, inclusive por suas interferências (vide sons de insetos e água). E entenda, como reprodução não vale a gravação adequada as suas características e reproduzida em outro local, mas sim a execução viva, única e exclusiva do momento e ambiente em si. Ou seja, nem field recordings exatamente é. Nem adianta procurar no YouTube. Ô conceito difícil, hein!
Templo da Ordem Universal de Salomão: União do Vegetal (2014)
Diante de tanta informação de diversas partes do mundo, quis procurar algo do Brasil. De preferência algo além dos sons florestais (nenhum problema, só queria tentar algo diferente do canto dos pássaros). Cheguei neste álbum curto, repleto de gravações atuais registradas no Rio Branco (AC), durante um culto em que é consumido o Santo Daime. Boa proposta.
Anthology Of Brazilian Indian Music (1962)
Diversas tribos indígenas brasileiras reunidas num disco importantíssimo. É triste pensar que diante das políticas do país, essas músicas só sobreviverão através de registros como esse, já que os povos estão sendo exterminados.

Nenhum comentário:
Postar um comentário