O Daft Punk já era um grupo consagrado desde meados da década de 1990, quando explodiram como um dos grandes representantes da música eletrônica. No entanto, ainda que o trabalho do Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter fosse calcado na house music, havia uma estética retrofuturista cativante em suas composições que os trouxeram para os holofotes da música pop. Três discos conceituados na bagagem e oito anos em silêncio ajudaram a criar expectativas para o novo trabalho do duo francês. Random Access Memories (2013) superou todas elas.
Não, o disco não apresenta grandes inovações sonoras. Muito pelo contrário, ele embarca na tendência da época que buscava requalificar a disco music, algo que o Justice, Mark Ranson e Bruno Mars também estavam fazendo. Mas o Daft Punk já havia demonstrado essa paixão anteriormente, sendo que aqui eles tratam de aperfeiçoar a linguagem.
A ficha técnica do disco é matadora. Entre os músicos que trabalharam no álbum estão os guitarristas Paul Jackson Jr. e Greg Leisz; o baixista Nathan East; e os bateristas John "JR" Robinson e Omar Hakim.
Com essa escalação, "Give Life Back To Music" abre o disco distante da música eletrônica, invocando trejeitos do funk e o AOR setentista. Tudo com uma sonoridade cristalina e robusta (ou seja, vintage na estética, mas contemporâneo na produção). Ajudando no groove está um dos personagens fundamentais para êxito do disco, o lendário Nile Rodgers, que distribui swing com sua guitarra estalada.
Elementos do soft-rock trazem exuberância para "The Game Of Love", uma balada que explora o vocoder sem abandonar a força emotiva da natureza lírica da canção. Adoro a pulso consistente e o clima solúvel do instrumental.
Como poucas vezes visto na história da música, o Daft Punk presta um tributo em forma de canção, que mais parece uma cinebiografia. "Giorgio By Moroder" traz o lendário produtor Giorgio Moroder narrando sua trajetória. O instrumental funciona como sonoplastia que ambienta a história. E sendo uma homenagem a quem é, não poderiam faltar sintetizadores espetaculares ditando o rumo da música. Vale dizer também que um metrônomo nunca foi utilizado de forma tão musical quanto aqui. Atenção também para uma "levada brasileira" em meio ao clima de jam, épicas orquestrações e performance instrumental impecável. Um momento extremamente ambicioso.
Exposta através do piano e com um talkbox dando vida a voz, "Within" é uma linda balada que deixaria Stevie Wonder agraciado. Bela melodia.
Nesta altura do disco, surge uma sequência de curiosas participações, começando com o Julian Casablancas e seu corajoso falsete na apenas ok "Instant Crush". Nesta seara indie, vale atentar também para a presença do Panda Bear na insistente/fixante "Doin' It Right".
Pharrell Williams e Nile Rodgers inauguram a parceria com o duo francês em "Lose Yourself To Dance", que se lançada no auge da disco music, poderia embalar o caminho para uma noite no Studio 54. Na faixa há uma brilhante manipulação de vocoders, inclusive criando arrojadas melodias paralelas.
Mas é mesmo "Get Lucky" o maior destaque. Seu groove contagiante e refrão memorável fez da canção um dos principais hits da década, daqueles de enjoar de tanto tocar, fosse numa festa com os amigos, rádios populares, casamento, loja de departamento ou programa do Luciano Huck. Poucas músicas conseguiram tamanho alcance preservando a qualidade composicional. Impressionante!
Na longa "Touch" é o veterano Paul Williams que traz graça e ironia com sua interpretação frágil. Mais uma vez há muito groove e perfeito arranjo somando orquestrações com sintetizadores.
De exuberante introdução cinematográfica/orquestrada, "Beyond" é puro Daft Punk. Muito vocoder, balanço orgânico e sintetizadores vintages. Características que transparecem a pessoalidade na composição e performance.
Um dos momentos mais inventivos do disco é "Motherboard", dona de timbres borbulhantes, melodia de flauta, orquestração enorme, baixo em staccato, sonoplastia de sci-fi e ritmos complexos (meio indianos, de autoria do Omar Hakim). A faixa se desenvolve de maneira bastante particular e rica. Com tantos elementos, impressiona a mixagem.
Mais uma vez o AOR é invocado, vide a excelente "Fragmentos Of Time", que apresenta o Todd Edwards como bom cantor. Ótimo balanço, múltiplos teclados e melodia vocal luminosa constroem a gravação. Se lançada em outros tempos poderia ser um sucesso radiofônico. Provavelmente foi essa aura que o duo tentou emular.
A derradeira "Contact" soa como um represente musical para o sucesso cinematográfico posterior de séries como Stranger Things, vide o clima de trilha-sonora de ficção cientifica oitentista. Poderia até soar caricato, não fosse a execução instrumental vigorosa. Seu desenvolver é assombroso.
Sucesso de crítica e público (ganhando do Grammy e sendo um dos discos mais vendidos daquele ano), Random Access Memories é a consagração definitiva do Daft Punk.

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