Após passar uma década em reclusão, o David Bowie ressurgiu sorrateiramente em 2013 com o ótimo The Next Day, lançado sem aviso prévio em seu 66º aniversário. Foi o suficiente para que o Bowie passasse de "gênio aposentado" para pretendente a "tour mais aguardada do ano". Os shows não vieram e sequer as entrevistas. Mas quando três anos depois saiu Blackstar, a surpresa e as expectativas foram as mesma.
Eu não ouvi o disco logo quando saiu. Senti que precisava reservar um tempo para obra, ainda mais diante das críticas, que apontavam o álbum como "introspectivo", "denso" e "humano". Esse último adjetivo o mais surpreendente, visto que o Bowie, embora expansivo em seu trabalho, sempre foi recluso, muitas vezes se escondendo em seus personagens. Surpreende também o adjetivo atribuído ao único disco de sua longa carreira a não traze-lo na capa. Ao menos essa foi a percepção imediata. Três dias depois, confirmada sua morte após meses lutando contra um câncer, é impossível desassociar a estrela do artista.
Ouvir o álbum sabendo de sua partida revelou o que já era explicito: o tom de despedida das letras. Em meio a tantas mutações e criações, Bowie elaborou um álbum póstumo em vida. Um testamento pop e autobiográfico.
Se The Next Day soava como um retrovisor para sua carreira triunfante, Blackstar era o ponto final. Todavia, seu lirismo melancólico é acompanhado pela inovação intrínseca a sua obra. Ele já tinha manisfestado deslumbramento com o Death Grips, Kendrick Lamar e o jazz novaiorquino contemporâneo, sendo tão surpreendente quanto óbvia a presença de instrumentistas como Donny McCaslin (sax), Jason Lindner (piano), Tim Lefebvre (baixo), Mark Guiliana (bateria) e Ben Monder (guitarra) na ficha técnica do disco. Já na produção está o velho companheiro Tony Visconti.
Ao tratar da morte, David Bowie constrói um ambiente sonoro peculiar, onde a linha que separa o orgânico (vida) do sintético (aparelhos médicos) é tênue. Ambos distanciam e aproximam do fim inevitável. É isso que me vem a mente ao ouvir a homônima faixa de abertura, "Blackstar", com sua voz ultra processada, ritmos intricados, sax escuros e orquestrações etéreas. A segunda parte é linda, além de abstrata e profunda. Faixa extremamente ousada e surreal, até mesmo para os padrões do David Bowie.
A energia presente no instrumental de "'Tis A Pity She Was A Whore" casa perfeitamente com a letra nonsense (quase como um delírio). Adoro como bateria e sopros crescem e ecoam pela sala de captação. Já a voz do Bowie tem o carisma de sempre. Gosto também como suas camadas vocais formam o coro.
Acompanhada em seu lançamento de um clipe emotivo, "Lazarus" é uma despedida clara. Embora passando dos 6 minutos, seu texto é conciso e direto ao ponto. Guitarras saturadas e melodias sombrias de sax ajudam a construir o sentimento de dor e finitude.
Com ritmo de drum and bass (embora orgânico) e repetição paranoica à la Swams, "Sue (Or In A Season Of Crime)" evidencia a criatividade do David Bowie dentro do rock. Faixa pesada, estranha e grandiosa, com direito a participação do James Murphy na bateria.
O líder do LCD Soundsystem volta em "Girl Loves Me". Mais uma vez a voz do Bowie é manipulada até alcançar timbres inesperados. Mesmo a tessitura interpretativa vai de agudos angustiantes à graves fúnebres. Tudo isso misturado num instrumental denso e rico em camadas.
A balada jazzistica "Dollar Days" é mais uma amostra dolorosa de quem parte e expõe a miséria dos que ficam. Já a derradeira "I Can't Give Everything Away" até tenta ser radiante no ritmo, mas a gaita chorosa e a letra melancólica revela a falsa sensação de paz. Atenção para seu arranjo de cordas e excelente solo de guitarra.
Não são muitos artistas que no final da vida conseguem produzir um trabalho tão criativo, humano e honesto. Não são muitos artista da estatura do David Bowie.
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