segunda-feira, 20 de junho de 2016

Caetano Veloso é mais engajado que Dead Fish (???)

Não me perguntem como, mas no último fim de semana, entre amigos surgiu a questão: quem tem letras mais engajadas, Dead Fish ou Caetano Veloso?

Tal comparação seria completamente inviável, mas como adoro debates, entrei na disputa defendendo o Caetano.

É preciso antes de tudo deixar claro que engajamento político não é sinônimo de qualidade musical e, muito menos, de apreço subjetivo. O Geraldo Vandré tem diversas letras engajadas em canções que eu acho um porre. Por outro lado, o Ted Nugent, que defende ideias que sou contra, tem músicas que eu adoro.

É possível também que um artista seja engajado de outra forma que não seja através das letras. Pode ser em entrevistas, postura comercial, contribuições sociais e até mesmo na estética como um todo de sua obra.

Inclusive, convenhamos, diante do mercado cultural tipicamente "zona sul/pequeno burguês" em que trafega o Caetano, onde ter uma Paula Lavigne ao lado muito o privilegia, falar atualmente em contestação tende a soar superficial.  

Dito isso, não considero nem o Dead Fish nem o Caetano Veloso símbolos de engajamento politico. No hardcore brazuca, por exemplo, acho o Cólera muito mais representativo. Na música popular brasileira, Chico Buarque e Taiguara merecem o posto. Se for partir para outros gêneros, aí então ferrou. Racionais MC's desbanca a maioria dos artistas brasileiros no quesito. (Obs: mais uma vez, não que isso importe).

Gosto do Caetano Veloso por outros fatores musicais. Sua poética criativa e refinada, sua fusão de estilos, a qualidade dos músicos que o rondam, sua inquietação artística, o canto peculiar, dentre outros valores que não necessariamente passam pelo engajamento politico.

Já no caso do Dead Fish, gosto de como o grupo conseguiu incorporar o hardcore melódico ao rock brasileiro. E se tem um engajamento que gosto na banda, não está nas letras ingênuas*, mas sim no fato de terem rodado o país com o próprio selo, sem patrocínio ou uso de dinheiro público, tudo no maior estilo DIY. O fato de não tocarem em festival em que bandas de abertura são obrigadas a venderem ingresso, é mais uma postura engajada que foge das letras.

*Ficou puto porque falei que as letras do Dead Fish são ingênuas? Deixe nos comentários exemplos onde não são.

Posto tudo isso na mesa, parto agora pro tópico da discussão: o conteúdo das letras.

Antes é preciso sempre lembrar que o Caetano Veloso viveu seu auge artístico em meio a ditadura militar, onde seu engajamento foi punido com o exílio. Por outro lado, felizmente, o Dead Fish não teve que conviver com a censura.

Numa época onde havia manifestações contra a guitarra elétrica (verdade seja dita, liderada pelos próprios artistas, em mais um prova de confusão politica do período), o tropicalismo driblou a censura e os valores conservadores. Das roupas, passando pela instrumentação, a postura... tudo foi um ato de ruptura estética e, porque não dizer, politica. Sendo assim, reduzir o conteúdo politico das canções somente as letras é um erro de avaliação.

Mas voltando para as letras, deixarei aqui exemplos onde o Caetano Veloso foi mais engajado que o Dead Fish. Não são as faixas que mais gosto, nem as letras mais interessantes, só me mantive na proposta do debate.

É Proibido Proibir
Em meio a ditadura militar, as guitarras dos Mutantes e o confronto do próprio público que, como Caetano diz, não estava entendendo nada, ele canta:
"Os automóveis ardem em chamas. Derrubar as prateleiras, as estantes, as estátuas, as vidraças, louças, livros, sim. Eu digo sim ao sim. Eu digo não ao não. Eu digo é proibido proibir".

Cambalache
Embora não seja o autor da canção, como interprete Caetano ataca tudo e todos no tango "Cambalache".
"Que o mundo foi e será uma porcaria eu já sei, em 506 e em 2000 também. Que sempre houve ladrões, maquiavélicos e safados, contentes e frustrados, valores e confusão. Mas que o século XX é uma praga, de maldade e lixo, já não há quem negue. Vivemos atolados na lameira e no mesmo lodo, todos manuseados".

Um Índio
Se ainda hoje a demarcação de terra ainda é uma luta indígena, há mais de 40 anos, Caetano já cantava:
"Depois de exterminada a última nação indígena e o espirito dos pássaros de fonte de água límpida... Virá, impávido que nem Muhammed Ali".

Podres Poderes
Só para deixar mais uma provocação: sabe aquelas canções de protesto que Cazuza, Renato Russo e Dinho Outro Preto sempre sonharam fazer e nunca conseguiram? Tá aqui:
"Será que nunca faremos senão confirmar, a incompetência da América católica, que sempre precisará de ridículos tiranos".

Fora da Ordem
Desconstruindo a imagem de um Brasil abençoado por Deus e bonito por natureza.
"Vapor barato, um mero serviçal do narcotráfico, foi encontrado na ruína de uma escola em construção. Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína. Tudo é menino e menina no olho da rua, o asfalto, a ponte o viaduto ganindo pra lua, nada continua. E o cano da pistola que as crianças mordem, reflete todas as cores da paisagem da cidade que é muito mais bonita e muito mais intensa do que no cartão postal".

Santa Clara Padroeira da Televisão
Acha a regulamentação da mídia um tópico importante? Talvez você possa se identificar então com alguns pontos dessa letras:
"Que a televisão não seja o inferno, interno, ermo, um ver no excesso o eterno quase nada (quase nada). Que a televisão não seja sempre vista como a montra condenada, a fenestra sinistra, mas tomada pelo que ela é de poesia".


O Cu do Mundo
Lembram dos casos dos "justiceiros" que amarravam possíveis infratores em postes e os espancavam com o intuito de fazer justiça com as próprias mãos? Caetano previu isso 20 anos antes:
"O furto, o estupro, o rapto pútrido, o fétido sequestro... O crime estúpido, o criminoso só... O fruto espúrio reluz, à subsombra desumana dos linchadores. A mais triste nação, na época mais podre, compõe-se de possíveis grupos de linchadores".

Haiti
Essa da vontade de postar a letra toda. Caê e Gil, num formato quase rap, botando para fora todas as podridões da sociedade. Do policial "capitão do mato", passando pelos deputados e representantes das igrejas que defendem pena de morte.
"A fila de soldados, quase todos pretos, dando porrada na nuca de malandros pretos, de ladrões mulatos e outros quase brancos, trados como pretos".
"E na TV se você vir um deputado em pânico mal dissimulado, diante de qualquer, mas qualquer mesmo, plano de educação que pareça fácil e vá representar uma ameaça de democratização do ensino de primeiro grau. E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital. E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto e nenhum no marginal... E ao ouvir o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina. 111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos".

Um Comunista
Para terminar, um música em homenagem ao Marighella.
"O mulato baiano, mini e manual do guerrilheiro urbano, que foi preso por Vargas, depois por Magalhães, por fim, pelos milicos. Sempre foi perseguido nas minúcias das pistas".

É isso, tá aí algumas das letras politizadas do Caetano. Se o debate em si não faz muito sentido, ao menos serve pra revermos algumas canções do artista.

Se alguém - agora é com você, Sorriso - se prontificar a selecionar as letras mais politizadas do Dead Fish nos comentários, eu coloco aqui no post.

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